Masculinidade no Século XXI

Imagine o seguinte: peço-lhe para cozinhar um peru de Natal e digo-lhe que tem que ser tenro, tem que ter sal, muito sabor e um toque de especiarias e coentros, mas não pode ser doce nem empapado. Você experimentou perus como este durante a sua infância porque era exatamente isto que os seus pais cozinhavam, por isso não pode ser difícil, certo? Então, você cozinha o peru e depois de ver vídeos de culinária, falar com amigos para pedir truques e passar horas a fio na cozinha, finalmente apresenta o peru tenro com um toque de caril e coentros. Mas esse não foi o peru que eu lhe pedi para cozinhar. Repare, eu queria algo ligeiramente crocante, um sabor mais acentuado a ervas aromáticas e levemente agridoce. E você teria toda a razão se me dissesse que as minhas instruções não foram suficientemente específicas, claras e úteis. Ainda assim, você não diz nada. Em vez disso, continua a tentar cozinhar o meu peru e a não satisfazer as minhas exigências – nada é suficientemente bom, claro ou específico e eu vou sempre pedir um toque extra. Porque é que lhe estou a dizer isto? Porque este é o problema da masculinidade do século XXI.
A nossa cultura e sociedade ocidentais defendem um modelo de masculinidade ultrapassado e quase fetiche que impede rapazes e homens de atingir o seu potencial máximo. Damos-lhes exemplos idealísticos de “homens-alfa”, sobrecarregamo-los com frases cliché como “os homens não choram” e ainda esperamos que eles respeitem as mulheres, comuniquem eficazmente, controlem os níveis de agressividade, a lista continua… Desde muito cedo, ensinamos os rapazes a esconderem os seus sentimentos e a sua vulnerabilidade e sinalizamos que a dor física é algo que devem aguentar, independentemente do quão irrealista e nocivo isto possa ser. Por exemplo, num estudo de diferenças de comportamentos parentais, os pais (homens) experienciaram o mesmo nível de prazer quando as suas filhas mostraram felicidade que quando os seus filhos mostraram ausência de emoções (Mascaro, Rentscher, Hackett, Mehl, & Rilling, 2017). A masculinidade impossibilita os homens de expressarem os seus sentimentos em amizades masculinas ainda que os rapazes que sentem permissão para processar experiências emocionais mais profundas tenham níveis de bem-estar físicos e emocionais mais elevados que aqueles que não sentem essa permissão (Johnson, Caskey, Rand, Tucker, & Vohr, 2014). E enquanto dizemos aos rapazes para suprimirem as suas emoções, também legitimamos os seus comportamentos agressivos culpando-os em níveis de testosterona mais elevados, ainda que o contexto social (mais que a testosterona) exagere a agressividade já presente (Sapolsky, 1998).
Mas os homens estão bem em geral, certo? Era bom que isso fosse verdade… A masculinidade apodrecida a que a nossa sociedade muitas vezes subscreve está a conduzir o crime, a misoginia, o sucesso académico mais baixo e os distúrbios de humor. Quando Langman (2020) traçou o perfil de homens condenados por homicídio, concluiu que todos os atiradores de escolas, nos EUA, experienciaram problemas de imagem corporal, careciam de empatia, rapidamente reagiam com agressividade e sentiam-se superiores. Para além das doenças mentais, que criminologista Madifs (2014) considera ser muito menos prevalente que normalmente assumido, os atiradores de escolas experienciavam frequentemente o que Langman intitula de “masculinidade danificada” e o seu sentido de valor era derivado da vergonha (Langman, 2020; Gilligan, 2003). Os rapazes que crescem impedidos de mostrar fraqueza e vulnerabilidade acabam por se ressentir das mulheres – que têm permissão para experienciar estas coisas – e aqueles que têm atitudes de hipermasculinidade são mais propensos a abusar dos seus parceiros românticos (Reiner, 2020; McCauley, 2014). Não só a masculinidade está associada a médias escolares mais baixas, como a resistência à expressão de emoções aumenta o risco de desenvolvimento de distúrbios de humor como a depressão (Yavorsky, Buchmann, & Miles, 2015; Ford, Lam, John, & Mauss, 2018). Os homens podem parecer bem, mas estão a coexistir com a masculinidade à custa da sua saúde física e psicológica e o problema está tão embutido na nossa sociedade que nem o conseguimos ver (Lieberman et al., 2007).
Dax Shepard, regularmente considerado um símbolo do “homem-alfa”, descreve a masculinidade como “unilateralmente destrutiva para todos nós” já que “não parece existir um reconhecimento igualitário que sofremos enormemente dela” (Grant, 2021, 38:00). Em semelhança ao peru que não conseguiu cozinhar, Dax Shepard explica que os homens também são vítimas da masculinidade e da “sensação de nunca estarmos a corresponder a expectativas, de não conseguirmos e de sermos um falhanço” (Grant, 2021, 38:00). Tal como o feminismo não é o ódio aos homens, mas a igualdade de oportunidades e direitos, a masculinidade não deve sacrificar os homens contendo-os numa caixa estreita e irrealista. E durante a era do feminismo, temos que dar aos rapazes as ferramentas que eles precisam para atingir o seu potencial máximo e reconhecer que este não pode estar limitado a papéis de género tradicionais.
Se ainda não está convencido, mas, de alguma forma, tenhamos tocado numa ferida (embora você nunca vá admitir porque não tem permissão para tal), leia o livro Better Boys, Better Men, de Andrew Reiner. Mas antes de pensar que só trazemos problemas, aqui fica uma solução notável: a Aprendizagem Socio-Emocional.
O termo Aprendizagem Socio-Emocional, também conhecido como SEL (Socio-Emotional Learning) surgiu numa reunião do Fetzer Institute, em 1994, em que investigadores, educadores e defensores de crianças trabalharam para promover o desenvolvimento positivo das crianças (“History,” CASEL). O SEL dá a crianças e adultos as capacidades necessárias para as suas relações e trabalhos, como reconhecer e gerir emoções, cuidar dos outros, construir relações positivas, tomar decisões responsáveis e lidar com situações desafiantes de forma ética e construtiva (CASEL, 2007). Os alunos de currículos SEL desenvolvem maior motivação para aprender e uma ligação à escola que melhoram a assiduidade, o seu comportamento na sala de aula e as taxas de finalização do secundário (Durlak, Weissberg, Dymnicki, Taylor, & Schellinger, 2011). Estes alunos também experienciam taxas mais baixas de depressão, ansiedade, stress e isolamento social e são menos propensos a responder agressivamente (Durlak, Weissberg, Dymnicki, Taylor, & Schellinger, 2011). Através do SEL, ensinamos as crianças que é normal ter emoções e que isso não faz delas fracas, mas honestas e humanas e reconhecemos que estas emoções podem ser a diferença entre começar uma conversa ou pegar numa arma (Reiner, 2020).
O mecanismo por detrás do SEL é claramente explicado pelo estudo de Liberman et al. (2007), em que os participantes que usaram palavras para descrever uma expressão de raiva mostrada numa fotografia ativaram o córtex pré-frontal ventrolateral e tiveram uma resposta reduzida na amígdala. Isto é particularmente importante porque o córtex pré-frontal ventrolateral está associado à inibição de respostas e à seleção de respostas adequadas aos objetivos, promovendo respostas racionais (Aron, Robbins, & Poldrack, 2004). Por outro lado, a amígdala é onde se originam as reações baseadas no medo, de modo que reduzir a sua resposta atenua as ações impulsivas (Reiner, 2020). Por outras palavras, “da mesma forma que carrega no travão quando está a guiar e vê um semáforo amarelo, quando põe os seus sentimentos em palavras, parece estar a travar a sua resposta emocional” (Lieberman et al., 2007).
Se isto parece promissor, aplique estas técnicas para ajudar as suas crianças: tire as suas temperaturas emocionais e ensine-lhes técnicas de mindfulness. No meio da pandemia e de ordens nacionais para tirar a temperatura corporal das crianças à entrada da escola, Margarida Silveira Rodrigues cunhou o termo “tirar a temperatura emocional” para mostrar a importância de verificarmos os nossos sentimentos. Na Raiz International Active Learning School, as crianças começam as suas aulas por se sintonizar com os seus sentimentos e os partilharem com a turma, se assim escolherem. “Sinto-me contente”, “sinto-me frustrado”, “sinto-me triste” e “sinto-me entusiasmado” são frases comuns que antecedem a descrição das necessidades das crianças. Margarida explica que depois das crianças reconhecerem os seus sentimentos (independentemente de os terem verbalizado), é importante encorajá-las a identificar as suas necessidades. Por exemplo, uma criança que diz “sinto-me triste” pode continuar com “preciso de um abraço” ou “preciso de falar com um amigo”. Repetir este exercício sinaliza o valor de expressar os nossos sentimentos e capacita e encoraja as crianças a resolverem problemas para responderem aos seus sentimentos e às suas necessidades, de modo que, conforme crescem, estarem sintonizadas com os seus sentimentos se torna tão natural como tomar o pequeno-almoço ou dormir à noite. Mesmo que a sua criança ainda não esteja inscrita num currículo SEL, ensinar-lhe técnicas de mindfulness pode mostrar-se extremamente vantajoso. A prática e meditação mindfulness previnem a reatividade e melhoram o raciocínio claro e a resolução de problemas devido à neuro-plasticidade – a capacidade do cérebro de se adaptar e redirecionar conduitos sinápticos e conexões devido a mudanças comportamentais e ambientais (Reiner, 2020; Fine, 2017).
Nem tudo está tudo perdido. Assim que identificamos o culpado, fica mais fácil resolver o problema. Por isso, encoraje o seu rapaz a encontrar uma identidade masculina que lhe permita “amar e assumir riscos saudáveis sem medo; lhe dá uma resiliência emocional maior; encontra força na vulnerabilidade; lhe dá coragem e força mais profundas; o ensina a ser responsável perante ele próprio e perante os outros; e lhe permite experienciar a amplitude total da vida emocional profunda – o espetro completo da humanidade – sem pedir desculpa” (Reiner, 2020). Ajudar rapazes ajuda raparigas, mulheres, homens, e os humanos em geral.
Referências:
Aron, A. R., Robbins, T. W., & Poldrack, R. A. (2004). Inhibition and the right inferior frontal cortex. Trends in cognitive sciences, 8(4), 170–177. https://doi.org/10.1016/j.tics.2004.02.010
CASEL. (2007, December). Background on Social and Emotional Learning (SEL). CASEL briefs. https://files.eric.ed.gov/fulltext/ED505362.pdf
Durlak, J. A., Weissberg, R. P., Dymnicki, A. B., Taylor, R. D., & Schellinger, K. B. (2011). The impact of enhancing students’ social and emotional learning: A meta‐analysis of school‐based universal interventions. Child development, 82(1), 405-432.
Fine, C. (2017). Testosterone rex: Unmaking the myths of our gendered minds. Icon Books.
Ford, B. Q., Lam, P., John, O. P., & Mauss, I. B. (2018). The psychological health benefits of accepting negative emotions and thoughts: Laboratory, diary, and longitudinal evidence. Journal of personality and social psychology, 115(6), 1075.
Gilligan, J. (2003). Shame, guilt, and violence. Social Research: An International Quarterly, 70(4), 1149-1180.
Grant, Adam (Host). (2021, May 04). Dax Shepard Doesn’t Believe in Regret [Audio Podcast episode].In Work Life. TED. open.spotify.com/episode/4O79J6yN2RjMn4dOUmg2RI?si=P1ifUykfTCOfEDALPfoeTA.
History. CASEL. (n.d.). https://casel.org/history/.
Johnson, K., Caskey, M., Rand, K., Tucker, R., & Vohr, B. (2014). Gender differences in adult-infant communication in the first months of life. Pediatrics, 134(6), e1603-e1610.
Langman, P. (2020). Desperate identities: A bio‐psycho‐social analysis of perpetrators of mass violence. Criminology & Public Policy, 19(1), 61-84.
Lieberman, M. D., Eisenberger, N. I., Crockett, M. J., Tom, S. M., Pfeifer, J. H., & Way, B. M. (2007). Putting feelings into words. Psychological science, 18(5), 421-428.
Madfis, E. (2014). The risk of school rampage: Assessing and preventing threats of school violence. Springer.
Mascaro, J. S., Rentscher, K. E., Hackett, P. D., Mehl, M. R., & Rilling, J. K. (2017). Child gender influences paternal behavior, language, and brain function. Behavioral neuroscience, 131(3), 262.
McCauley, H. L., Jaime, M. C. D., Tancredi, D. J., Silverman, J. G., Decker, M. R., Austin, S. B., Jones, K., & Miller, E. (2014). Differences in adolescent relationship abuse perpetration and gender-inequitable attitudes by sport among male high school athletes. Journal of Adolescent Health, 54(6), 742-744.
Sapolsky, R. M. (1998). The trouble with testosterone: And other essays on the biology of the human predicament. Simon and Schuster.
Yavorsky, J., Buchmann, C., & Miles, A. (2015). High school boys, gender, and academic achievement: Does masculinity negatively impact boys’ grade point averages. Ohio State University.


